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No mês do Orgulho LGBTQIA+ pesquisa revela um Brasil hipócrita

Especialistas apostam em avanços nos próximos anos e consideram o Brasil como um país de cultura conservadora. Foto: Divulgação

No mês que celebra o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, lembrado nesta segunda (28) — que marca a mobilização histórica de pessoas em busca de direitos iguais —, pesquisa realizada pelo instituto Ipsos revela que metade da população brasileira concorda com casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas não aceita ver, ou presenciar, qualquer demonstração de afeto entre LGBTs.

A data foi escolhida por conta da rebelião no bar Stonewall Inn, no Village, nos Estados Unidos, em 1969, após conflitos entre manifestantes gays e a polícia. Desde então, foram anos de lutas dedicadas à causa e a tentativa de dar à comunidade LGBTQIA+ novas conquistas e igualidade de direitos.

Segundo o levantamento divulgado este mês, 55% dos brasileiros entrevistados declararam apoio ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Destes, no entanto, 42% não querem ver demonstrações de afeto ou carícias em público. Além disso, 18% se mostraram contrários ao enlace legal; 14% são a favor de que haja algum tipo de reconhecimento por lei, mas não um casamento; e 14% não souberam responder. No total, o estudo entrevistou pessoas de 27 países, trazendo discussão sobre como a comunidade LGBTQIA+ é vista e aceita na sociedade.

Os dados do Brasil são alinhados à média global, já que 54% respondeu ser a favor do casamento de pessoas do mesmo sexo e 16% a favor de algum reconhecimento legal. Entretanto, o Brasil se revela ainda bem inferior aos dados de países como Suécia, Holanda, Espanha e Bélgica, onde os entrevistados mostraram apoio à união de pessoas do mesmo sexo, através do casamento ou de outro dispositivo legal, sendo superior a 84%.

De 27 nações, o Brasil é a 12ª que menos endossa o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Um fator curioso revela ainda que 15% dos entrevistados no Brasil não são heterossexuais, revelando portanto uma divergência dentro da própria comunidade. É o segundo maior percentual, entre as 27 nações, atrás apenas da Índia (17%). Em terceiro lugar está a Espanha, com um total de 12% de pessoas que se consideram homossexuais, bissexuais, pansexuais, assexuais ou outros. A média global, levando em conta todos os países, é de 9%.

Gerente de Pesquisas Qualitativas na Ipsos, Marcio Aguiar explica que apesar do percentual de aceitação no Brasil atingir a maioria da população, o caminho ainda é longo e precisa ser pavimentado através de parcerias.

Segundo pesquisa, 55% dos brasileiros aceitam união de pessoas do mesmo sexo. Foto: Paulo Pinto / Divulgação

O reconhecimento de sexualidades ou identidades de gênero diferentes da sua nem sempre condiz com a aceitação de comportamentos e a conquista de direitos. É somente com o esforço da atuação pública, empresas e sociedade, que esse reconhecimento começa a ser normalizado".

Aguiar afirma ainda que o Brasil está na metade do percurso em relação à aceitação da comunidade LGBTQIA+ e que a inclusão ainda depende de fatores como conscientização da sociedade com o tema.

"Existe ainda um trabalho a ser feito de conscientização da sociedade em prol de uma maior aceitação e inclusão. A comunidade LGBTQIA+ precisa de informação, sempre que possível, que ajude a nortear algumas discussões importantes em várias esferas sociais, que vão desde a discussão de políticas públicas a iniciativas sociais, civis ou do empresariado", conclui.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geográfia e Estatisticas (IBGE), o número de registros de casamentos entre pessoas do mesmo sexo diminuiu. Após crescer 61,7% entre 2017 e 2018, houve recuo de 4,9 % de 2018 para 2019.

Apesar da queda acentuada, os dados se mantiveram superiores ao observado em 2017 (5.887). Os matrimônios entre cônjuges femininos representam 59,1% dos registros com essa composição conjugal em 2019. Centro-Oeste (-13,1%) e Sul (-12,8%) foram as regiões com as quedas mais intensas no número de casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Apenas no Norte houve aumento (6,5%) no número dessas uniões.

Limites de aceitação

Evento precisou mudar o formato para se adaptar à sociedade e conquistar mais adeptos. Foto: Riotur / Divulgação

Sociólogo e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Michel Misse considera positivo o número da aceitação divulgado pelo estudo da Ipsos. O especialista acredita que houve avanços, apesar do país ainda ter uma tendência conservadora e tradicional, mas aposta em novas mudanças nos próximos anos.

"É um processo natural da mudança da sociedade. Acredito que daqui a uns dez anos novas mudanças sociais devem acontecer e essa parcela da população que aceita, deve aumentar. Pode demorar um pouco, mas o Brasil não é uma ilha enquanto observa outros países no mundo. As mudanças sociais sempre acontecem"

O discurso da representatividade também é seguido por pessoas ligadas às causas do movimento. Well Castilhos, de 49 anos, é fundador do grupo Liberdade/Santa Diversidade, surgido em 2002, em São Gonçalo. A iniciativa abriu as portas e os olhares para a comunidade na cidade. Segundo Well, que também é especialista em gênero, sexualidade e direitos humanos pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), as políticas de inclusão avançaram nas últimas duas décadas, mas os números nem sempre estão de acordo com o que retrata a realidade.

"Tivemos muitos avanços nos últimos 20 anos, mas a impressão é que damos dois passos para voltar um. As paradas LGBTQIA+, tivemos que alterar aos olhos da sociedade, mas que continua sendo um símbolo de luta de identidade. Essa aceitação tem um limite. É como se tivéssemos um teto de vidro e uma hora batemos a cabeça. Vejo como uma aceitação 'higienizada'. Pra algumas pessoas, que dizem aceitar, está tudo bem. Mas parte desse mesmo grupo não quer ver carícias e demonstrações de carinho em público. Enquanto o tema não for muito discutido, vai sempre existir esse teto. É preciso uma mudança estrutural da sociedade"

Castilhos aponta ainda para outra questão: a inclusão e aceitação de pessoas trans. Muito perseguidos, atualmente já é possível enxergar essa parte da comunidade ocupando novos espaços antes de maneira impensáveis.

"Tivemos avanços significativos em relação aos homens e mulheres trans. No mercado de trabalho, por exemplo, essas pessoas eram alijadas e hoje já vemos empresas com mentalidades e políticas de inclusão para essa parte da população. Antes, eram só cabeleireiras ou até mesmo a prostituição. Hoje, vemos atores e atrizes em novelas interpretando papéis deles mesmos. Muitas empresas estão com essas questões em pauta". explica.

O avanço pode ser sentido na pele por Ariana Agnes da Silva, de 33 anos. Mulher trans, ela trabalha atualmente em um loja de departamentos em São Gonçalo e diz se sentir representada também na política. Militante, faz parte da União Nacional de pessoas LGBT+ de São Gonçalo (UNA) e concorreu ao cargo de vereadora nas últimas eleições de 2020 pelo PCdoB, ficando como suplente.

Militante, Ariana Agnes se candidatou ao cargo de vereadora em São Gonçalo nas eleições de 2020. Foto: Arquivo Pessoal

"Entendo que essa aceitação só foi possível a partir do nome social. A partir do momento em que o STF reconheceu que todas as mulheres trans poderiam alterar o nome na certidão sem ter que passar pelo juiz facilitou muito o acesso para população trans em relação ao mercado de trabalho, questões de educação, entre outros assuntos. Possibilitou que essa parte da população (trans) ficasse mais visível para a sociedade"

Agnes falou ainda sobre o atual momento da política e as mudanças a partir das eleições de 2018.

"Ainda existe uma grande parte do público que não aceita, por questão de conhecimento, por não saber da nossa existência. Por conta dessa divisão política entre direita e esquerda, vários efeitos negativos surgiram e por trás dessa situação existem não somente os que não aceitam, como também aqueles que não respeitam os nossos direitos", lamenta.

Diversidade na política

O mapeamento da Associação Nacional de Transexuais e Travestis revel ou crescimento de pessoas trans no meio político. Em 2020 foram 30 candidaturas trans eleitas, sendo sete foram as mais votadas em suas respectivas cidades. Em 2016, apenas oito chegaram às câmaras municipais. Foram 294 candidaturas pelo Brasil, sendo 30 coletivas e apenas 2 para prefeitura e 1 para vice-prefeitura. O percentual representa um aumento de 226% em relação a 2016, quando foram apenas 89 candidaturas.

É o caso da vereadora de Niterói, Benny Briolly. Quinta candidata mais votada em 2020, Benny foi a primeira trans de Niterói a assumir um mandato no Legislativo. Pautada no discurso das minorias e contra as políticas do presidente Jair Bolsonaro, a vereadora ainda enfrenta problemas no mandato, alegando sofrer ameaças de pares na Casa. Ela chegou a passar um tempo fora do país pedindo mais segurança. Retornou à cidade, mas ainda não se sente segura para exercer o mandato plenamente.

Benny Briolly, vereadora de niterói
Vereadora de Niterói, Benny Briolly (Psol) alega dificuldades para excercer o mandato por conta de constantes ameaças e ataques. Foto: Vítor Soares

"O Brasil é o país que mais mata pessoas trans. A realidade de exclusão precisa ser um debate presente na sociedade e nos espaços legislativos, por isso estou aqui. Com a ocupação dessa população nos espaços de poder de decisão para a criação de políticas públicas locais e nacionais, esses passos são  fundamentais para assegurar a vida da população LGBTQIA+ e avançar na luta"

Políticas Públicas

Segundo levantamento da Organização Gênero e Número, que avalia informações por meio de dados para qualificar o debate sobre equidade de gênero no Brasil, em 2020 o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos gastou pouco mais da metade do orçamento total. O índice de 98% do orçamento executado se refere aos R$ 617 milhões empenhados, que são os valores comprometidos, mas não efetivamente gastos. O montante pago a fornecedores, com entrega e trabalho finalizado, foi de apenas R$ 333 milhões.

Os dados são do Portal da Transparência do Governo Federal e se referem a todos os meses de 2020. De acordo com as informações, o setor que mais recebeu recurso foi o de proteção a idosos, com cerca de R$ 160 destinados. Dos quase R$ 800 mil que poderiam ser investidos nas políticas de inclusão e igualdade da comunidade LGBTQIA+, nenhum valor foi gasto com o tema no ano passado.

Em resposta aos questionamentos da organização sobre investimentos no setor, o ministério justificou que o dinheiro foi, sim, executado, mas não explica o motivo do alto valor empenhado face ao baixo valor gasto.

Especialista em psicologia clínica e pós-graduanda em Psicologia Positiva, Ciência do Bem estar e autoconhecimento pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), Emília Oliveira atende a pessoas da comunidade LGBTQIA+, no Rio. Segundo ela, muitos estão fora do país porque não se sentem seguros em viver com a falta de políticas de inclusão.

"A homossexualidade infelizmente ainda é um tabu, há uma crença enraizada que é errado se identificar com parceiro do mesmo sexo. Desde cedo as crianças já são reprimidas com palavras que beiram o abuso psicológico e até mesmo agressões físicas. Isso traz consequências muito fortes na vida adulta. A maneira de lidar melhor é tentar entender a própria história e a dos pais, consequentemente lida melhor com seus traumas do passado, passa até a perdoá-los"

Inclusão

Painel instalado na orla da Zona Sul do Rio com a scores do arco-iris. Foto: Prefeitura do Rio
Postos no orla da Zona Sul do Rio receberam paineis com mensagens de afeto em lembranço ao Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+. Foto: Prefeitura do Rio / Divulgação

A organização também fez um levantamento referente às políticas destinadas à população LGBTQIA+ nas capitas brasileiras. O resultado, baseado nos planos de governo das últimas eleições de 2020, revela que políticas e estratégias de inclusão para esse público foram as mais ignoradas entre os prefeitos eleitos: 16 deles sequer citam qualquer ideia relacionada ao tema e apenas nove, das 25 propostas, tinham alguma menção envolvendo políticas referente à comunidade.

Chefes do Executivo de três capitais citam políticas para mulheres e negros, mas sem olhar para a população LGBTQIA+. Porto Velho (RO) é a única prefeitura que só tem política para negros, e ainda sem citar mulheres. Nove — entre elas, Rio de Janeiro e São Paulo — citam apenas políticas para mulheres. As capitais de Fortaleza, Porto Alegre e Curitiba não contemplaram mulheres, negros, LGBTQIA+s em seus planos de governo ao mesmo tempo.

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