Polícia

Mais de 100 crianças sumiram em 2020: 'E se fosse seu filho?'

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|  Foto: Pedro Conforte
Em média, uma criança desapareceu a cada três dias no estado do Rio em 2020. Foto: Pedro Conforte

Elas sentem como se faltasse um pedaço e morrem um pouco mais todos os dias por não saber onde estão os filhos. O mais recente caso dos três meninos de Belford Roxo, na Baixada Fluminense do Rio, que desapareceram  sem deixar rastros há quase um mês, ilustra e reacende o drama vivido por muitas famílias. Crianças desaparecidas.

"E se fosse o seu filho que tivesse desaparecido?"

O questionamento emocionado é da dona de casa Luciene Torres, que procura a filha desaparecida há 11 anos, também na Baixada Fluminense.

Vinculada à Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, a Fundação para a Infância e Adolescência (FIA) registrou em todo o estado, no ano passado, 148 casos de desaparecimento de crianças e adolescentes.

De acordo com o órgão, 119 casos foram resolvidos, representando mais de 80% de localização. Desde 1996, o cadastro no sistema é feito pelo S.O.S Crianças Desaparecidas e de lá para cá, são 3.780 casos, e já foram localizados 3.220. 

De acordo com a FIA, 578 casos de desaparecidos permanecem sem solução.

Sem rastros

A dor das famílias em busca dos desaparecidos é a ferida que nunca cicatriza. Luciene Torres, a fundadora da Organização Não Governamental Mães Virtuosas no Brasil, viu seu mundo literalmente cair, quando a filha, na ocasião com 9 anos, desapareceu.

"Ela levantou de manhã e foi em uma padaria próxima a nossa casa em Nova Iguaçu. Tomou banho, se vestiu toda de rosa e saiu. Como achei que ela estava demorando muito, minha outra filha foi procurar e não encontramos. Na época tinha um local que fazia anúncio de notícias do bairro e fomos até lá. Logo depois recebemos a informação de que um homem de bicicleta tinha levado ela e aí o nosso desespero começou" 

De acordo com Luciene, a família descobriu no mesmo dia,  que o suspeito seria um andarilho.

"Poucas foram as informações repassadas pra mim na delegacia. Mas uma policial me confidenciou disse que ele [andarilho] falou apenas que não tinha matado e só repassado a minha filha. Eu descobri tempo depois  que ele foi solto e ficou por isso mesmo. Fiquei decepcionada, pois nada foi feito no caso da minha filha", desabafa.

Invisíveis

Segundo a fundadora da Ong, casos como o da pequena Luciane de 9 anos se tornam invisíveis para a sociedade. 

"Nesses 11 anos eu fui conhecendo na FIA outras mães que passam pela mesma dor que eu. E todas nós temos o mesmo sentimento. Somos esquecidas. Não temos um acompanhamento psicológico e ficamos sem apoio jurídico. E no fim tudo vai parando na vida da gente. A polícia para de investigar, a gente sem o filho, sem saber para onde ir. É onde nossa vida para", lamenta. 

A dificuldade da procura e ao mesmo tempo em continuar a rotina também está entre os dramas sofridos por essas famílias.

"No meu caso eu tenho outros filhos e é muito difícil porque sempre falta algo. Dependendo do marido, ele acompanha ou não nas buscas. Mas tem caso em que a mulher é abandonada por estar em depressão. Eu fui vendo essas coisas e pensei  no que fazer para não deixar que tudo acontecesse comigo. Foi aí que resolvi criar a ONG, para tentarmos nos ajudar", explica.

Apoio

A Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado Rio de Janeiro (Alerj), presidida pela deputada estadual Renata Souza (Psol), acompanha casos de crianças desaparecidas para realizar um encaminhamento até a assistência jurídica e psicológica.

Deputada Renata Souza preside a Comissão de Direitos Humanos na Alerj. Foto: Divulgação

"O trabalho é acolher essas famílias. Então, pressionamos as autoridades para que as investigações ocorram. No caso dos meninos da Baixada, por exemplo, já entramos estamos em contato com a Delegacia de Homicídios para saber o que está sendo feito"

A deputada destaca ainda que famílias, as vezes, encontram dificuldades no registro de ocorrência imediato.

"Temos um protocolo de atendimento que não é adequado com as famílias que perderam filhos. Temos que fazer a valer o cumprimento da lei e não ter que esperar 24 horas para fazer o registro de ocorrência para começar as investigações", conclui.

A arte imita a vida

Em 1995 estreava no horário nobre da televisão brasileira o folhetim Explode Coração, da autora Glória Perez. Entre os temas abordados na trama, o ponto alto se tornou a campanha pelas crianças desaparecidas.

A escritora buscou inspiração nas mulheres que ficavam nas escadarias da Cinelândia, no Centro do Rio.

"O que me impressionou e me alertou sobre esse tema foi a sensação de que aquelas pessoas estavam esquecidas. Eu passava ali e as via segurando uma foto. Pessoas passam apressadas e muitas vezes nem percebem"

Glória Perez, autora

Glória revela ainda ter questionado as mães sobre o que faltava para ajudar a encontrar as crianças.

"Elas me falaram sobre a divulgação dos rostos. Então resolvi dar voz a essas mulheres. E então na novela elas contavam as circunstâncias do desaparecimento e mostravam a fotografia", explica.

Ainda segundo a autora, durante a exibição da novela, foram encontradas por volta de cem crianças.

"Isso aconteceu logo no primeiro capítulo. Choviam telefonemas de todo o Brasil, eram mães desesperadas querendo participar, ter sua chance.
As ligações eram atendidas pelas mães das chacinas de Acari e de Vigário Geral, que se organizaram para abraçar a causa solidária", afirmou.

Glória Perez relembrou que, na época, o empresariado comprou a proposta e as fotos dos desaparecidos passaram a ilustrar até produtos de supermercados. 

"A campanha ultrapassou o término da novela, mas infelizmente acabou. Foram encontradas muitas crianças. As imagens delas estavam em sacolas e produtos. Acho que não custava nada os empresários fazerem isso novamente"

Novela ajudou mães de crianças desaparecidas a serem encontradas. Foto: Reprodução/ Redes Sociais.

Fragmentos

Mestre em Psicologia, Alessandra Augusto, destaca que muitos são os pontos de trauma que famílias enfrentam após o desaparecimento dos filhos.

"Elaborar essa perda é muito difícil porque a pessoa não tem algo no que se apegar. A esperança da chegada parece que é sem fim. O desejo de rever, a dúvida de estar bem ou não, consome os familiares"

Segundo a especialista, é comum após os desaparecimentos as famílias se fragmentarem.

"Conforme o tempo vai passando, gera esse clima e começam a surgir questionamentos sobre quem negligenciou cuidados, se há criança teve um motivo em si, ou se o clima do lar não estava adequado", pontua.

Mas apesar do trauma a psicóloga atenta para a esperança de que ainda possível recomeçar:

"É necessário um bom trabalho terapêutico para que os afetos sejam ressignificados. É importante saber que o núcleo familiar permaneceu, podendo existir outros filhos, que precisam de um suporte emocional"

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