Erika Figueiredo - Direito e Muito Mais

Sobre as virtudes

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A forma como o indivíduo vai agir no mundo traz a última das virtudes originais, que é a justiça. Foto: Shutterstock

Assisti ontem ao filme Adoráveis Mulheres. Baseado no romance de Louisa May Alcott, esse filme americano de 2020, ambientado na época da Guerra de Secessão, trata da vida de uma família de classe média, composta por pai, mãe e quatro filhas, com suas dificuldades, privações, escolhas e perdas.  

O longa é uma aula de filosofia. Fiquei fascinada pela personagem Jojo, uma moça altiva e corajosa, independente e generosa, interpretada por Saoirse Ronan, que desde pequena sonha ser escritora. A mocinha, muito voluntariosa e questionadora, não consegue se adaptar bem à alta sociedade e às suas exigências, e vive um duelo interno entre casar-se e seguir as regras de seu tempo, ou manter-se solteira e dona do próprio nariz.  

Enquanto se desenrola, a trama traz um aprendizado profundo sobre virtudes, amor, caridade e busca de um propósito de vida, evidenciando algo que os gregos sabiam de cor, mas nós, na modernidade, não conseguimos compreender: vida é sofrimento, é serviço no bem, é busca de um sentido e é amor ao próximo. 

A uma certa altura do filme, Jojo conversa com sua mãe, elogiando a virtude da temperança que a mesma teria, ante as adversidades da vida e os desafios da convivência diária em família. A mãe, Marmee ( interpretada por Laura Dern), para sua surpresa, lhe responde o seguinte:  

“Sinto raiva quase todos os dias da minha vida, não sou paciente por natureza. Mas, após quase 40 anos me esforçando, aprendi a não deixar a raiva me controlar. Espero que você se saia melhor do que eu”. E prossegue, justificando o comportamento da filha e acalmando seu coração: “Existem algumas naturezas que são nobres demais para se conter, e altivas demais para se curvar”. 

A virtude da temperança não caminha sozinha. Ela precisa estar de mãos dadas com a fortaleza, a justiça e a prudência. As virtudes, conforme ensinou Aristóteles, são o caminho para a ordenação interna do homem, e têm por finalidade o bem viver, corrigindo o caráter e aprimorando a inteligência das pessoas. Essas quatro virtudes cardinais desdobram-se em outras virtudes anexas, sendo o eixo sobre o qual a vida deve girar.  

Quando a mãe conta para a filha que precisa controlar sua ira todos os dias, ela está, na verdade,  buscando ser virtuosa, ordenar sua alma,  domar suas paixões. Isso é a base da Ética das Virtudes (ética de Nicômano), ensinada por Aristóteles, e desvendada por São Tomás de Aquino. Apenas a alma ordenada pode se orientar para o bem. 

E como podemos domar nossas paixões? Platão ensinava que há uma hierarquia entre a razão, a vontade e as paixões. Segundo ele, a razão precisa estar no topo da pirâmide, norteando as decisões, e ela se materializa através da virtude da prudência. Agir com sabedoria é ser prudente.  

Abaixo da razão, temos a vontade. Esta nos impele à ação, e é evidenciada pela virtude da fortaleza, para que ajamos com  coragem. Em seguida, temos as paixões, que nos dominam e estimulam aos excessos. Estas precisam ser controladas pela temperança, para que não nos percamos da ordem interna que devemos cultivar.  

Logo, a razão orienta o bem que a vontade deve buscar, e canaliza as paixões. A forma como o indivíduo vai agir no mundo traz a última das virtudes originais, que é a justiça. Essa simboliza a soma das outras três, por meio das ações do indivíduo.  

Por isso um homem desordenado não pode ser justo: porque falta a ele o exercício equilibrado da temperança, da prudência e da fortaleza, para o alcance da justiça. Do mesmo modo, uma sociedade composta por homens desordenados, não é justa, e é isso que vivemos na atualidade. Pessoas completamente dominadas por seus impulsos e vontades, vivendo em um mundo que estimula a exacerbação desses vícios o tempo todo.  

Platão dizia que de nada adiantaria transformar os cargos: era necessário transformar as pessoas que ocupam esses cargos, para que estas fossem aptas a agir com justiça. Essa é a base de tudo, e sem que as pessoas busquem uma mudança íntima, que Jordan Peterson, psicólogo canadense, traduz como “arrumar o próprio quarto antes de querer mudar o mundo” não teremos uma sociedade equilibrada. 

A família em torno da qual gira a trama do filme busca viver dessa forma equilibrada e virtuosa, com cada um dos seus integrantes modulando o comportamento e ajudando no aperfeiçoamento das virtudes dos demais. Em determinado momento, uma das irmãs pergunta ao seu pretendente qual é o seu propósito de vida, e por que ele, que teve tantas possibilidades ao alcance das mãos (por ser de família abastada e ter tido acesso à educação e à arte), não se vale do que aprendeu para descobrir sua verdadeira vocação.  

Nessa família, apesar das dificuldades financeiras, as filhas foram apresentadas às artes, à música, às letras e aos livros, e todas desenvolveram uma vocação em particular, o que tornou-as únicas, especiais e indispensáveis, dentro do funcionamento do lar.  

Isso nada mais é do que a adequada organização da Pólis, de que falava Platão em A República, como modelo de sociedade no qual todos os trabalhos e tarefas se complementam, para que se alcance uma vida boa. No microcosmos formado pela família do romance, cada um ocupava seu papel e exercia suas funções com amor e comprometimento.  

Estamos a léguas de distância desse formato de família e de sociedade. Não conseguimos, apesar de todos os ensinamentos recebidos dos gregos, compilados por Platão, Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, avançar no terreno das virtudes e da busca do sentido da vida, nos tempos atuais.  

Perdemos o foco, a coragem, o equilíbrio, a motivação, a fé. Perdemos, inclusive, o interesse de conhecer a Filosofia, a História e a Teologia, a fim de obtermos respostas. Se, no passado, a educação era ministrada de forma integral, para a formação completa do indivíduo, hoje vivemos de migalhas, jogadas para nós por professores despreparados e ideologizados.  

É preciso aprender com os clássicos, ir atrás das grandes obras, refletir sobre a História e beber da fonte do conhecimento grego que nos foi legado. Somente assim, será possível reordenar a sociedade, encontrar a verdade, agir com justiça e equilibrar as paixões e as más tendências.  

“Tente mover o mundo – o primeiro passo será mover a si mesmo”. 

Platão

“Uma vida não questionada não merece ser vivida”. 

Platão

A niteroiense Erika Figueiredo é escritora, promotora de Justiça Criminal, Mestre em Ciências Penais e Criminologia pela UCAM, membro da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais e do MP Pro Sociedade, aluna do Seminário de Filosofia e da Academia da Inteligência. Me siga no Instagram @erikarfig

Texto extraído da Tribuna Diária, publicado em 15/03

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A niteroiense Erika da Rocha Figueiredo é escritora, promotora de justiça criminal, mestre em ciências penais e criminologia e membro da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais e do MP Pro Sociedade.

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